quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Tapete Vermelho


Em um desses dias em que tudo parece proposidatamente não querer acontecer, resolvi abrir o baú de recordações e arrumar no pendulário da lembrança a trailaria espalhada pelo chão. Com vassoura, pá e outros utensílios mais pus-me à lide. Arrastei memórias antigas, guardei cartas inconfessáveis e por isso mesmo não escritas, limpei o pó dos planos refeitos, acomodei em caixas episódios recentes e outras quinquilharias mais que o passado cuidou de acomodar, até que em um canto, meio que esquecido e enpoeirado, disposto sob um desses neurônios de pouco uso cerebral, encontrei guardado em uma lata de alumínio onde se via inscrito “Mazzaropi e a banda das velhas virgens”, as reminiscências da fita cinematográfica do Carlitos brasileiro. Embora amarotada, velha e antiga, parecia ainda muito bem cuidada entre as conexões neurais da minha mente.

Abri o invólucro, foi uma viagem no tempo! Lembrei-me que assisti a película em tela grande numa época em que o cinema ainda não competia com a televisão e povoava as cidadezinhas no interior da Paraíba. Em quase todas as cidades havia, ao menos, um cinema, muitos deles mantidos pela igreja católica, como era o caso do de Cajazeiras-PB.

Na circunvizinhança, a sétima arte estava presente. Em Patos, tinha-se o Cine São Francisco (transformado hoje em loja de conveniência), em Sousa o imponente Cine Gadelha (onde hoje funciona a rádio jornal de Sousa), em Cajazeiras, como já dito, mantido pela Diocese, havia o conhecido Cine Apolo XI, além de outros mais e em Pombal, o velho Cine Lux fazia a nossa diversão. A propósito do Cine Lux, sempre achei estranho um cinema com nome de sabonete da Gessy Lever, mas era o único que tínhamos e àquela altura, o nome era o que menos importava.

Mas, a ligação entre Cine e sabonete para mim ia muito além do nome. Ao sabonete sempre tive acesso, ao Cine, nem sempre. Havia Galdino, uma pedra no meio do meu caminho.

Como todo moleque, despertando para as safadezas do mundo, vivia arrodeando o Cine Lux a procura de oportunidade, ou melhor, de coragem e de uma “brecha” para ver um desses filmes impróprios para os meus 15 anos de idade. O abstáculo, Galdino. O proprietário do cinema.

Galdino além de dono me parecia também ser fiscal de menores e lanterninha. Mas para mim mesmo era ele a incarnação do porteiro do céu, ou do inferno, conforme fosse a conveniência de quem estava do lado de cá. O danado parecia que conhecia a idade de todos os garotos de cor e salteado. Enfrentá-lo num filme censurado sem ser barrado era então uma aventura tal qual a de Odisseu em sua saga para retornar a ilha de Ítaca.

Mas, eu haveria de tentar essa façanha. Melhor ser barrado que a dúvida de não ter tentado. Tracei o estrategama e esperei o dia certo para dar o bote.

O prédio do Cine Lux era imponente. Construção antiga e sua arquitetura sempre me pareceu a de um mausoléu. Lateralmente, na parte superior, havia duas ou três janelinhas de onde a gente podia ver se o filme já havia iniciado ou curiar alguma cena mais ousada. A bilheteria também era uma pequena abertura lateral e seu acesso se dava por dois ou três degraus, circundados por um corrimão de ferro desbotado pelo tempo.

Sempre duvidei da “seriedade” daquela jovem bilhetista do cinema. Afinal, ela vendia os ingressos para os filmes infantis e os impróprios. “Deve assistir a todos” – matutava os meus 15 anos.

A única e principal entrada do cinema era protegida por um enorme portão de ferro pintado na cor branca onde postava-se Galdino, separando os anjos bons do anjos maus. Após o portal, forrando alguns degraus, via-se estendido um tapete vermelho que conduzia os espectadores à famosa sala de exibição, dando um certo ar de suntuosidade naquele ambiente. Ainda após o portão, distribuídos nas paredes laterais, via-se os cartazes dos próximos filmes a serem exibidos durante a semana, geralmente Tarzan, Os Trapalhões, Teixeirinha, Lúcio Flávio, o pasasageiro da agonia e, mais ao fundo, aqueles filmes! Aqueles para os maiores de 18 anos.

Na parte externa, postado ao pé do meio-fio da calçada do cinema, encontrava-se religiosamente a carrocinha do senhor Zé, repleta de drops, balas juquinha, amendoins torrados (embalado em papel de embrulho), pipoca, chicletes ploc e outras guloseimas mais. Seu Zé embora nunca tenha assistido aos filmes, conhecia os roteiros de quase todos, inclusive aqueles que, pela demanda, careciam de duas sessões, uma iniciando às 19 e a outra às 21 horas, como era o caso dos Trapalhões. Casa cheia.

No domingo, nas matinês do meio dia, lá estava a carrocinha do seu Zé e após a exibição dominical do Tarzan, íamos todos gastar os últimos centavos de cruzeiros nos doces.

Outra cena curiosa era ver o padre Andrade (sempre com dois picolés: um chupando e outro no bolso da batina) entrar para ver “garganta profunda”, o clássico do cinema pornô. Aquilo me deixava inquieto e fervilhava os meus neurônios. Ora, se o padre pode, eu também posso, dizia comigo mesmo.

Certo dia, o magrão (locutor encarregado de anunciar os filmes) do carro de som, além da aposição do cartaz na porta do mercado público, era pelas ruas que as películas eram anunciadas na conhecida Opala bege, com uma caixa de som e quatro difusora, anunciava em tom quase profético: “O Cine Lux, o palácio das grandes exibições cinematográficas tem a honra de apresentar para hoje: Aluga-se Moças! participação especial de Grethecen e Rita Cadillac. Não percam, exibição única.” E ao final sentenciava: “Proibido para menores de 18 anos”. Essa última parte era de morte. Aquela advertência entrava em meus ouvidos como lança afiada desmantelando todas as minhas esperanças de espectador adolescente.

Mas, não me contive. Não tem jeito. É hoje. Vou ver esse filme. Arrematei.

Senti naquele dia que estava prestes a incorrer na ilicitude da falsidade ideológica, mas afinal era por uma boa causa, ou melhor, minha única causa naquela ocasião. Iria enveredar pelo crime. O motivo era relevante e, depois, o tempo haveria de me absolver no futuro, fazendo as necessárias aparas e sopesando as minhas razões. Arguiria a legítima defesa do interesse pueril. Pronto, era absolvição na certa. Os jurados haveriam de me compreender.

Juntei os últimos centavos, calcei um sapato preto (o salto me deixaria mais alto), camisa de mangas compridas, pano passado (para dar um ar de maturidade), seiva de alfazema no cabelo, e despinguelei para o Cine Lux.

De minha casa para o cinema leva-se apenas 10 minutos, mas naquela noite foi o caminho mais longo que percorri. Tramava o que diria a Galdino caso fosse indagado da idade. Imaginava ser barrado na frente das pessoas, a vergonha que passaria. Quase desisti da empreitada. Mas, àquela altura não tinha mais volta. Sim, haveria de enfrentá-lo. Melhor ser barrado por Galdino que a dúvida de não ter tentado. Insistia eu como a querer me convencer e me dotar de coragem.

Lembrei-me do padre. Certamente estará lá. Vou esperá-lo furar a fila e entrar na frente dele, talvez isso sirva de pressão, ele foi quem me batizou, me conhece desde pequenininho, talvez pudesse interceder por mim naquele momento, caso fosse preciso. Ao menos tinha essa evocação sentimental e religiosa para apelar.

Vou procurar não olhar para Galdino - ouvi dizer que ele ler a idade pelos olhos - e se ele me indagar vou engrossar a voz. Vai dar certo! Não vou perder por nada esse filme. E se Pai souber? Que importa, o plano está traçado. Depois, é Gretchen e Rita Cadillac, pelo quilate das duas as coisas tinham que ser duras mesmo, literalmente. Ah, às favas! sou um homem de 15 anos e ponto final.

No caminho de minha casa ao Cine fui revisando o plano, fazendo conjecturas e procedendo os mais variavéis cálculos e trincheiras.

Pontualmente às dezoito horas e quarenta e cinco minutos estava eu em frente (ou melhor, ao lado) ao Cine Lux. Pedi a um amigo, maior de idade, para comprar o ingresso, postei-me meio às escondidas de Galdino e esperei o padre Andrade chegar.

Seu Zé acudiu-me com dois drops de ortelã e reservei um troco para o picolé de manga, igual ao do padre, afinal o segredo poderia estar no picolé. A sorveteria ao lado do cinema também era de propriedade de Galdino. Haveria de lhe dar um lucro dobrado comprando um ingresso e um picolé. Ele vai me deixar entrar.

Prestes a começar o filme e nada do padre. Um suor frio escorria-me a testa, as mãos transpiravam, a ansiedade me fazia andar de um canto para outro da rua, o coração veio a boca. Vou entrar!

Nego Dinda e Zé de Otávio que também tentaram entrar, foram barrados de primeira. Aquilo me pareceu um mau presságio. Um aviso do além: Não vou! pensei em toda a trama, na vergonha, na corretiva que levaria de meu pai, da mangoça dos colegas do colégio. Era o fim. Aquilo tudo pesava em meus ombros.

Quando pensei em desistir, eis que, de repente, lá vem o padre. Batina e chapéu de massa pretos, bota tipo coturno, tropego de uma das pernas, um picolé na boca outro no bolso, e vem descendo rumo ao Cine Lux. Toma seu lugar na fila e se prepara para entrar.

Espreitei o padre. Esperei-o chegar perto do portão, prendi a respiração, furei a fila bem à sua frente, baixei os olhos, levantei-me na ponta dos pés (pra dar a impressão de uma maior estatura), entreguei o ingressso apressadamente a Galdino e deslizei-me feito quiabo em direção ao tapete vermelho.

Mas ai ouvi um incisivo “opá!”. Pronto, lasquei-me em bandas! Pensei. Tentei virar-me para contra-argumentar mas o corpo não odebecia, a boca seca não balbuciava palavra alguma, os ombros pareceiam suportar as dores e o sofrimento do mundo, pensei na mangoça dos colegas da escola, da surra que levaria de meu pai no dia seguinte, da vergonha contida e agora prestes a escorrer publicamente. O mundo desabou naquele “opá!”. Para dizer a verdade as cores fugiram dos meus olhos, o mundo escureceu. Já não via os cartazes de outrora, o tapete vermelho já não tinha cor. Tudo era escuridão ao meu redor.

De repente, um foco de lanterna se fez no ambiente e somente aí pude perceber que a escuridão ao meu redor não tratava-se de nenhum blecaute emocional, mas que verdadeiramente havia faltado enérgia eletrica em toda a cidade e estavamos às escuras.

De pronto, a sessão foi cancelada, os ingressos restituídos. No dia seguinte, meu pai descobriu a trama. Tomei uns cocorotes e um puxão de orelha e só pude ver o “Aluga-se Moças” três anos mais tarde. Já com meus 18 anos.

Um comentário:

Unknown disse...

Ah,ah,ah,ah,ah...essa foi demais!!!Padre Andrade na época assistiu Garganta Profunda ??(Eu nunca soube disso).Na lateral do cinema tinha umas aberturas de ar onde na diagonal dava para "ver" um pedacinho da tela,principalmente aquela velha frase NÃO FUME, em letras luminosas vermelhas, onde na hora do audio cujos gemidos eram perfeitamente audíveis lá fora, era um empurra daqui...de lá...pra ver se dava para ver...digamos,... o filme que o Padre assistiu .ah,ah,ah,ah,ah...