domingo, 19 de abril de 2009

Michel Foucault e a invenção do homem

Michel Foucault agia como um luminoso ator do pensamento. Titular da cátedra do Collège de France de 1971 até o ano de sua morte (1984), encarnava um ritual cênico: acendia uma luminária, afastava os gravadores e começava a falar com a coerência de quem escreve. Vivia a sala de aula como palco de ebulição e idéias, apresentando em primeira mão as novidades de sua pesquisa. Nas vinte e seis horas anuais de curso, criava em público, assim como fizera Jean Hippolyte que o antecedera. Essas aulas de Foucault tornaram-se míticas. Conta-se que mais de quinhentas pessoas disputavam espaço em um anfiteatro de trezentos lugares para assistir a verdadeira performance de gênio. O que chamava atenção no teatro-Foucault era a precisão na exposição de uma vasta e corajosa investigação em curto espaço de tempo. O tamanho do gênio estava à mostra ao fazer da rotina de aulas o momento magno que anunciava a mudança dos rumos do pensamento do século XX e do século que vemos nascer.

Foucault foi um dos maiores filósofos do século XX. A grandiosidade de seu pensamento revela-se na ordem estritamente teórica de seu pensamento ao momento pragmático estabelecido nas ressonâncias de sua teoria. Este último se vê no fato a cada dia ainda experimentado por professores, alunos e estudiosos em contato com sua obra, da reunião que conseguiu estabelecer entre as diversas ciências. As ciências humanas, cuja concepção ele ajudou a forjar, tornam-se resultado dos saberes entrelaçados no tempo e dos modos como armam-se em estruturas de poder. A interrelação entre saber e poder permitirá conhecer a chamada “invenção do homem”, uma das idéias críticas do pensador que cavava nos documentos e livros mais inabituais da história a sua verdade recôndita ou mesmo oculta.

História dos Sistemas de Pensamento fora o nome sintético que aglomerou a preocupação em estabelecer pela descoberta o processo de fundação do saber ocidental. No famoso livro As Palavras e as Coisas, Foucault declarou radicalmente essa intenção de analisar o que ele chamou a “experiência nua da ordem”. Essa experiência fará a diferença entre o uso dos códigos ordenadores dentro dos quais vivemos e as reflexões sobre a ordem realizada por teóricos e que estabelecerá o projeto de uma “arqueologia do saber”, diferente de uma história das idéias ou das ciências. O projeto arqueológico – o período de trabalho de Foucault entre 1961 e 1969 – baseou-se na alteração da noção de história para além da noção de progresso rumo ao futuro ou ao passado, procurando o contexto e a fonte onde as condições de possibilidade das teorias e conhecimentos, filosofias e racionalidades, idéias e conceitos deixavam-se desenhar fundando uma noção do “homem” – como objeto e como sujeito - que marca até hoje a história e a investigação científica. Foucault pesquisava a falta, o desvio, o desconhecido procurando entender as tramas invisíveis e os silêncios da história.

A arqueologia foucaultiana propõe um método no mais adequado sentido do termo, um modo de olhar que altera a todo momento seus princípios e que, por isso, não pode valer como medida de toda a história que se impõe como busca pelo saber de qualquer objeto. A arqueologia ensina ainda hoje a olhar cada objeto respeitando a sua verdade e construindo um discurso a partir da observação. O discurso da arqueologia vem do objeto, não é o objeto que vem do discurso, sendo construído por ele. A História da Loucura, talvez o livro mais conhecido de Foucault, inaugura essa fase arqueológica – conclusa em A Arqueologia do Saber de 1969 - como experiência do pensamento do próprio Foucault, no qual a atenção ao objeto da investigação faz falar o método. O método é a exposição do olhar que se esforça por deixar de ser olhar para atingir a coisa com a palavra disponível. A filosofia de Foucault será próxima da literatura enquanto procura do silêncio contido nas palavras e na linguagem.

A História da Loucura não é apenas uma história da psiquiatria ou de seu surgimento, mas uma investigação sobre o enclausuramento do louco, a sua reclusão em um espaço manicomial, para realizar, paradoxalmente, sua exclusão. A intenção do livro é mais que explicar uma história cronológica ou progressiva da loucura, entender a relação entre a modernidade e a loucura que continuará sendo desenvolvida no livro O Nascimento da Clínica. O que Foucault irá descobrir é que a doença mental tem menos de duzentos anos e que o louco foi patologizado pela psiquiatria apenas a partir do século XVIII, ou seja, medido a partir de uma ordem da razão da qual essa ciência recente fazia parte. A partir de A História da Loucura, tornou-se possível compreender o processo de inclusão concomitante à exclusão do louco, sua inscrição como objeto do poder da razão que separa e exclui de si o que a nega, instaurando um “outro” num gesto historicamente repetitivo que precisava ser avaliado. A História da Loucura era – pelo avesso - a história da razão, esta a medida que instaurara, já na época da Renascença, o valor real e prático de uma questão anteriormente apenas simbólica: a nau dos insensatos, narrativa das mais curiosas com a qual Foucault começa seu livro e que explica como loucos eram escorraçados de suas cidades indo parar em outras plagas até que o manicômio veio a fixar-lhe a âncora. Estes e outros temas entram na análise da produção da loucura que passa de viagem andarilha à doença mental e anormalidade a ser execrada. Este livro deixa uma brecha teórica que fundará o restante do pensamento foucaultiano.

A etapa arqueológica que investigava sobre o saber foi seguida pela genealogia - termo que Foucault empresa de Nietzsche. Se a primeira explicava “como” apareciam os saberes e suas transformações, a genealogia situava-se em torno do desvendamento do “porquê” sobre os saberes inseridos na ordem política, ou seja, pensando-os na conexão com as relações de poder. Livros como Vigiar e Punir de 1975 e a História da Sexualidade que tem seu primeiro volume A Vontade de Saber publicado em 1976, revelam esse novo tema. O poder passa a ser o eixo a partir do qual pode-se compreender o surgimento dos saberes. Poder não é uma essência ou uma unidade interpretativa da realidade, mas uma prática social que se constitui na história. Toda análise derivada de um objeto tão mutável quanto o poder deveria estar atenta à mutabilidade do próprio processo. Poder, para o filósofo, são práticas ou relações, não somente o Estado, este apenas um articulador do poder, ao lado das demais instituições. O poder se realiza na vida pragmática de uma sociedade e formula-se em técnicas de dominação. Nesse aspecto o corpo do indivíduo é o lugar especial onde o poder vai realizar-se. A história do saber ali define-se como “história dos corpos” e estes são analisados em sua submissão a uma “microfísica do poder”. Um poder exercido em escala social precisa ter sua realização concreta na produção e controle do indivíduo: ele será a disciplina exercida sobre esse indivíduo no controle de seus gestos, hábitos, comportamentos, discursos. Atomizado na sociedade e servindo, ao mesmo tempo, a um mecanismo magno que não tendia a expulsar os homens da vida social, mas antes administrar e ordenar seus cotidianos com objetivos políticos e econômicos, o poder é o nome da manipulação do corpo. O poder foi – e é - a disciplina aplicada aos corpos. Talvez toda disciplina seja sempre disciplina do corpo. Por isso, Foucault analisará o modo como seres humanos se relacionaram a seus corpos e, na História da Sexualidade, como esta foi o eixo de um poder disciplinar que produziu uma das mais curiosas reviravoltas nas concepções mais avançadas sobre sexo que talvez nem suspeitemos. Em vez de pensar o sexo segundo clichê da libertação e da revolução, na soberania da lei do sexo como produção da subjetividade livre, Foucault apresenta uma de suas idéias mais corajosas: como que um lado perverso do dispositivo social da sexualidade que nos faz crer que nela está a nossa liberação enquanto nos submete aos seus mecanismos. Nesse ponto, vemos ainda a atualidade da análise de Foucault num tempo em que pornografia e censura ainda comandam o destinos de nossa sociedade enquanto ocultam-se de nosso olhar. A teoria de Foucault, vinte anos após sua morte, causa-nos um espanto que será ainda maior quando pudermos perceber a enormidade do alcance de sua investigação como diagnóstico do que vivemos, do que somos, do que deixamos de ser, do modo como inventamos a nós mesmos.


Marcia Tiburi

Publicado no Caderno Cultura do Jornal Zero Hora de 12 de Junho de 2004. Página 8.

2 comentários:

Unknown disse...

O QUE SOMOS AFINAL ? (EIS A GRANDE QUESTÃO) :)

Goliardos disse...

E fOUCAUT AINDA CONTRIBUI PARA ESSE ENTENDIMENTO COMPLEXO DE HOMEM QUE ANTES NÃO "EXISTIA".