sábado, 16 de outubro de 2010

Redução da maioridade penal

Foto de Ivaldo Cavalcante


O simplismo e o imediatismo das propostas de redução da maior idade penal não respondem aos complexos desafios da realidade brasileira. Romper com a cultura da banalização da morte requer que se rompa com a cultura da banalização da vida. A cruel morte de João Hélio, no Rio de Janeiro, acentuou os sentimentos de indignação, desespero e medo em face da violência epidêmica e da profunda crise da segurança pública.

É neste cenário de justificada comoção social que ressurge o debate sobre as propostas de redução da maioridade penal no Senado Federal. Dessas propostas,quatro reduzem a maioridade penal de 18 para 16 anos; uma reduz para 13 anos, em caso de crimes hediondos; e outra determina a condenação penal "quando o menor apresentar idade psicológica igual ou superior a 18 anos".

Reduzir a idade penal, com o fim de manter adolescentes na prisão,seria uma resposta eficaz a este alarmante quadro? Como enfrentar acomplexa situação do adolescente em conflito com a lei? Medidas preventivas e repressivas mostram-se necessárias ao adequado enfrentamento do problema.De um lado, no campo preventivo, destaca-se o desafio de criar alternativas ao crime, à sedução do tráfico e da violência, por meio de eficientes e criativos programas de inclusão social que permitam valorizar e resignificar a vida dos adolescentes, sobretudo daqueles que sofrem com as condições mais vulneráveis da miséria e da exclusão.

A banalização da morte é o reflexo da banalização da vida, que nega o direito à esperança a um contingente de jovens brasileiros. Neste sentido, são fundamentais a identificação e ampliação de práticas epolíticas exitosas especialmente endereçadas à juventude urbana. No campo repressivo, estudos comprovam à exaustão que de nada adianta o endurecimento da legislação penal se persistir no imaginário social a cultura da impunidade. Isto é, a repressão penal deve deixar de ser seletiva à determinada classe social, com a garantia de que autores de crimes de toda natureza sejam punidos. Contudo, se a pena deve ter um caráter retributivo e ressocializador, constata-se que o sistema carcerário brasileiro não satisfaz qualquer destas finalidades. Este sistema, por vezes sob o controle do crime organizado – de quem o Estado se torna refém –, só tem acentuado a violência e brutalizado os detentos. Como observou Nigel Rodley, então relator especial da ONU sobre o tema da Tortura, em visita oficial ao Brasil, não é razoável tratar os presos como animais, para posteriormente devolvê-los à sociedade com a pretensão de terem se transformado em "pessoas reintegradas e civilizadas".

Tal sistemática não constitui uma medida de combate à criminalidade,mas, ao revés, constitui medida de estímulo à criminalidade. O indíce de reincidência, em torno de 80%, atesta a absoluta falência dequalquer dimensão ressocializadora do modelo carcerário brasileiro. Segundo estimativas, eventual aprovação da proposta de redução da maioridade ainda agravaria o déficit nas prisões, que passariam a ter,em média, 11.000 presos a mais (somados ao universo de 140.000 vagas faltantes). À absoluta ineficácia das propostas de redução da maioridade penal, some-se a sua flagrante inconstitucionalidade. Isto porque a Constituição de 1988 realça a absoluta prioridade a ser conferida aos direitos da criança e do adolescente, dentre eles, os direitos à vida, à saúde, à educação, à dignidade, ao respeito e à liberdade.

Para a Carta de 1988, o direito à proteção especial de crianças e adolescentes compreende "a obediência aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade". Este direito à proteção especial implica no direito à inimputalibidade penal dos menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. Tal legislação é o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, por sua vez, dedica um longo capítulo às medidas socioeducativas a serem aplicadas quando da prática de ato infracional.

A redução da maioridade penal perverte a racionalidade e principiologia constitucional, na medida em que abole o tratamento constitucional especial conferido aos adolescentes, inspirada na ótica exclusivamente repressiva, que esvazia de sentido a ótica da responsabilidade, fundada nas medidas socioeducativas.

Com isto, a perspectiva sociojurídica de exclusão (repressiva e punitiva, de isolamento) vem a aniquilar a perspectiva de inclusão (protetiva e socioeducativa, dereinserção social). Atente-se que a Constituição assegura, dentre as cláusulas pétreas, os direitos e garantias individuais. Ao petrificar direitos e garantias,a Constituição proíbe qualquer proposta de emenda tendente a reduzir elimitar o alcance dos direitos e garantias constitucionalmente previstos, dentre eles o direito à inimputabilidade penal dos menoresde dezoito anos. Além de violar cláusula pétrea constitucional, a proposta afronta parâmetros internacionais de proteção dos direitos humanos, que o Estado Brasileiro se comprometeu a cumprir, como a Convenção sobre os Direitos da Criança – que, de igual modo, prevê a excepcionalidade e abrevidade das medidas privativas de liberdade aplicáveis a adolescentes, bem como a exigência de tratamento pautado pela reintegração e desempenho construtivo na sociedade, quando da prática de ato infracional.O simplismo e o imediatismo das propostas de redução da maioridade penal não respondem aos complexos desafios da realidade brasileira. Romper com a cultura da banalização da morte requer,sobretudo, que se rompa com a cultura da banalização da vida.


ANDHEP - Associação Nacional de Direitos Humanos - Pesquisa e Pós- Graduação.

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