segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Todo mundo nu?


Desgostoso com a humanidade, Deus resolveu inundar a terra com um punitivo dilúvio. Só um homem merecia ser salvo: Noé. Que de fato escapou, com sua família e com exemplares da fauna e da flora. Mas Noé não era tão perfeito como o Senhor imaginava; depois do dilúvio, fabricou vinho, tomou um porre e ficou nu, para constrangimento dos filhos, que tiveram de cobrir sua nudez. Pergunta: será que Noé pelado figuraria nos comerciais de bebida que aparecem na tevê? Pouco provável. A idéia ali é apresentar a bebida sob uma forma sedutora. Tão sedutora, que, segundo a Folha de S. Paulo, tem sido causa de acusações mútuas no Conar - Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária. Uma dessas acusações diz que a concorrente "insinua êxito sexual após o consumo de cerveja e contém elevado grau de erotismo". O que, convenhamos, não é novidade: associar o consumo de bebida a sexo é uma estratégia comum nesse tipo de publicidade e contrasta com o semi-inócuo e perfunctório "Beba com moderação" colocado no fim do anúncio: o que é "beber com moderação"? Quanto de bebida significa isso? Num país em que, segundo a Secretaria Nacional Antidrogas, mais de um quarto da população exagera no álcool, estas perguntas são mais que pertinentes, e justificam o decreto presidencial do último dia 23, introduzindo a Política Nacional sobre o Álcool. Os usuários de álcool deverão ter acesso ampliado a tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS) e medidas serão adotadas para reinserção social dos dependentes. Até aí todo mundo está de acordo. Mas o decreto prevê também a regulamentação e a fiscalização da publicidade de bebidas alcoólicas, o que sem dúvida gerará discussão. Como disse o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, há respaldo legal para a medida, mas é claro que, como assinala o próprio ministro, a regulamentação exige sensatez. Mesmo porque existe uma coisa chamada consumo social da bebida; diferente de Noé, muitas pessoas bebem e não tiram a roupa (ou, quando tiram, é por finalidades justificadas). O certo é que algo tinha de ser feito, porque, assinala Sérgio de Paula Ramos, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e das Drogas, "a propaganda incentiva o consumo abusivo", que, por sua vez, leva à agressão, ao crime, ao acidente de trânsito. No dia em que foi publicado o decreto, eu estava em Belo Horizonte. A caminho da universidade onde daria uma palestra, passei por um bar desses de rua. Era meio-dia e, ao redor de uma mesa, estavam sentados uns oito adolescentes de ambos os sexos. Chamou-me a atenção o número de garrafas de cerveja sobre aquela mesa; eram, no mínimo, duas por pessoa (sem contar, claro, as que já tinham sido levadas). O que aconteceria depois com aqueles jovens? Quantos sairiam dali para dirigir? Quantos sairiam dali para se meter em confusão? Está na hora de fazer - com moderação, se vocês quiserem - estas perguntas. E está na hora de encontrar respostas para elas.


Moacyr Scliar

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