sábado, 4 de dezembro de 2010


Séculos antes da invenção das máquinas fotográficas os japoneses já eram mestres na arte de fotografar. Fotografavam sem máquinas. Para isso usavam palavras. Suas maravilhosas miniaturas fotográficas feitas com palavras têm o nome de hai-kais. Quem lê um hai-kai vê. São tão pequenos – mas pesam tanto! Leminski, valendo-se de uma sugestão de Jorge Luís Borges, descreve um hai-kai como um objeto poético mínimo de peso intolerável Não tente entender. Você entende um por de sol? Um pássaro em vôo? Um sorriso da pessoa amada? Não são para serem entendidos. São para serem vistos. O prazer do que se vê está no ato de ver e não no ato de pensar sobre o visto. Os pensamentos prejudicam a visão. Não foi a toa que Alberto Caeiro afirmou que “pensar é estar doente dos olhos”. Quem lê um hai-kai fica curado dos olhos por nos obrigarem a não pensar. Veja esse haikai: “Na velha casa que abandonei as cerejeiras florescem”. Acabou. É só isso. Agora, sem ser levado pelo desejo de compreender, entregue-se à visão. Veja a casa velha. A casa que abandonei. Passei por ela. Triste solidão. Os muros estão caídos. O jardim de outrora se transformou num matagal. As paredes estão descascadas. Mas, a despeito desse abandono, as cerejeiras florescem... As cerejeiras são fieis. Pode-se confiar nelas. Às vezes brinco de fazer hai-kais embora não obedeça à técnica. Aqui está um, inspirado pelas cerejeiras. Era o tempo quando se tinha medo de andar pelas ruas de Campinas. A morte estava à espreita nas esquinas. Aí eu vi um ipê florido e o haikai saiu: “Na cidade amedrontada os ipês amarelos florescem.” Os ipês amarelos estão floridos de novo. Voltam sempre, no mesmo tempo, na ordem certa. Em julho florescem os ipês rosa. Em agosto, os amarelos. Em setembro, os brancos. De todos os mais desavergonhados são os ipês amarelos. Mini vulcões em erupções de alegria. É bom ver sua copa amarela, sem uma única folha, contra o céu azul. Alguns deles, fui eu que plantei. Mas são poucos os que se assombram e param para vê-los. Acho um ipê amarelo florido um milagre maior que um cego ver ou um paralítico andar. Então escrevi esse hai-kai: “Indiferentes aos olhos que não vêem, os ipês amarelos florescem...”

As alegrias chegam de forma inesperada. Eu tive duas. Uma delas foi uma coisa que uma professora me contou. Um inspetor visitava a sua escola. Entrou numa sala de aulas e viu trabalhos das crianças relativos a alguns dos livros infantis que escrevi. Para testa-las ele perguntou: “Quem é Rubem Alves?” Um menininho respondeu: “É um homem que gosta de ipês amarelos.” Fiquei comovido. Foi a mais bela e concisa descrição de mim mesmo que já tive. A outra veio-me por outra professora. Entregou nas minhas mãos alguns volumes. “São livros seus”, ela explicou. Livros meus? Mas não havia nada escrito no papel imaculadamente branco. É que aqueles livros não eram para serem lidos com os olhos. São para serem lidos com a ponta dos dedos. Braile. Que alegria saber que os cegos me lerão! Nunca imaginei...

“Moça com brinco de pérolas” é um filme que está passando no cine Jaraguá. É sobre uma tela do pintor holandês Vermeer, do século XVII. Não tem mistério, mortes, suspense, ação rápida. Tudo é devagar. A vida é devagar. Depressa, só a morte. É uma aprendizagem de ver. Trata-se de uma estória provocada pela visão dessa tela singela, o rosto de uma jovem com um brinco de pérolas. Como disse Bachelard “o que se vê não pode se comparar ao que se imagina.” Vale, numa tela, a imaginação que ela provoca. Por isso muitas pessoas de vista perfeita nunca viram realmente um quadro, embora o tenham visto. Falta-lhes imaginação.O autor da estória viu a tela “Moça com brinco de pérolas” e sua imaginação voou. Se me der na telha vou publicar de novo a estória que inventei ao meditar sobre uma outra tela de Vermeer. “Mulher lendo uma carta”. As telas de Vermeer põem paz ma minha alma. Elas me reconduzem a um mundo de intimidade tranqüila, de sombra e luz, de cores quentes, que não existe mais. É nesse mundo que mora a minha alma. Acostumados à ação rápida é altamente provável que os jovens não consigam ficar até o fim. Eles vivem num mundo que não é o meu. Não são culpados. Fico triste por não poder compartilhar com eles o mundo da minha alma. Sugestão: Vá a uma livraria boa e compre um livro com telas de Vermeer da coleção “Taschen”. É barato. Quem sabe seu filho ou filha vai se encantar...

As Olimpíadas são um evento assombroso. Começa com aquela festa linda, comovente, festa de fraternidade e paz. Norte americanos e iraquianos desfilaram no mesmo desfile sem que o Bush tentasse matar os atletas do Iraque, como terroristas disfarçados. Ele estava jogando golfe. O grande símbolo: uma oliveira cheia de folhas! Dizem os poemas sagrados que a pomba que Noé soltou ao final do dilúvio voltou com um ramo de oliveira no bico. Que bom seria se aquela oliveira anunciasse o fim do dilúvio de loucuras bélicas que está destruindo o mundo! Algumas dessas festas ficam inesquecíveis. Lembro-me do ursinho que marcou as olimpíadas de Moscou. No encerramento o ursinho chorou: lágrimas escorriam pelo seu rosto. Sei muito bem que urso não tem rosto, urso tem é focinho, mas seria feio dizer “lágrimas escorriam pelo seu focinho”. Do jeito como as coisas vão, em breve se dirá que os bichos têm rosto e os homens têm focinho.

Aí chega o primeiro dia. Vai-se a fraternidade. Agora é briga. Briga pelo pódio. O pódio é motivo de briga. Todo pódio é motivo de briga. Nas Olimpíadas não há lugar para fraternidade porque fraternidade significa todo mundo junto brincando de roda e nas Olimpíadas não há cantigas de roda. No pódio só cabem três. Cada atleta quer mesmo é que o outro se dane. Ah! A suprema felicidade do velocista dos 100 metros quando sabe que o recordista baixou hospital acometido de uma súbita cólica renal, na véspera das finais. E as ginastas rezam, enquanto as adversárias executam os seus números: “Tomara que ela escorregue...”

Havia na UNICAMP um professor visitante na Faculdade de Educação Física, Manoel Sérgio, que era muito contra ao atletismo. Ele perguntava: “Você conhece algum atleta longevo?” E concluia: “Quem vive muito são essas velhinhas que se encontram ao fim da tarde para tomar chá com bolo...” Já viu cavalo treinando os 1.500 metros? Só quando dominados por homens. As Olimpíadas não são uma manifestação de saúde. São uma exaltação do desejo de ser o maior. Prova disso são os doppings. Os atletas sabem que a coisa faz mal à saúde. Pode matar. Mas uma morte prematura bem vale um lugar no pódio! Aquela máquina de correr, uma negra norte-americana, me esqueci de nome dela, só músculos, morreu subitamente de um ataque cardíaco. Assim não pensem que os atletas têm boa saúde, que praticam hábitos saudáveis de vida. Lembram-se da corredora suíça, ao final da maratona? Era a imagem de um corpo torturado pela dor. Penso nas nadadoras. Elas me assustam. Não se parecem mulheres. Aqueles ombros enormes! Acho que meus braços não conseguiriam abraçar uma delas. E nem eu quereria. E acho que nem ela quereria. Abraço é perda de tempo. É preciso aproveitar o tempo lutando contra a água. Inimigas da água. Isso mesmo. Porque uma pessoa que passa dez anos de sua vida treinando seis horas por dia não por prazer mas para sair da piscina um centésimo de segundo na frente da marca olímpica só pode ter ódio da água. A água é o inimigo a ser vencido. Compare com as crianças. Elas amam a água. Elas não querem sair da água. A água é sua companheira de brincadeiras. As nadadoras, ao contrário, não brincam com a água. Lutam contra ela. Tocada a borda da piscina, para onde olham as nadadoras? Elas olham para o placar onde aparece o tempo. É isso. É o tempo que elas amam. Quanto mais depressa melhor! O perigoso é que elas apliquem essa doideira em outras coisas da vida onde o que vale é “quanto mais devagar melhor”.

Estou velho. Sofro do mal dos velhos: repito coisas que já disse. Por vezes repito por esquecimento. Outras vezes porque quero repetir. Contador de piada repete piada sabendo que já a contou dezenas de vezes. No grupo de poesia que se reúne comigo às 3as. feiras repetimos poemas porque eles são belos. Nas festas de aniversário repetimos o chatíssimo “parabéns prá você” e estupidamente sopramos as velinhas, símbolos da morte. Pois vela que se apaga não é símbolo da morte? E aí me vieram alguns badulaques à cabeça. Suspeitei que já os tivesse mostrado. Conferi. De fato, eu já os mostrei. Mas vou mostrar de novo porque eles se aplicam bem ao momento olímpico que estamos vivendo.

Há um famosíssimo, badaladíssimo conferencista que anuncia suas conferências com a afirmação: “Seu lugar é o pódio”. Esse é o sonho de todo atleta que vai para as Olimpíadas. Mas logo ele descobre que a verdade não é aquela anunciada pelo conferencista mas uma outra, muito mais sóbria, enunciada por Jesus: “Muitos são os chamados mas poucos os escolhidos.” No pódio só há lugar para três. Os outros atletas não aparecem. Na vida também é assim. Se o lugar de todo mundo fosse o pódio, se todos seguissem os conselhos do dito conferencista, todos ganhariam a medalha de ouro. Já pensaram nisso? Todos com medalhas de ouro no peito? Tantos pódios quantos são os atletas? Que coisa maravilhosa nas Olimpíadas! Que coisa maravilhosa na vida! Todos os problemas do país estariam resolvidos. Os pobres andariam de BMW e os famintos comeriam camarão na moranga. Governo burro esse que temos! Por que não nomeia o dito conferencista como Ministro da Educação para que todos subam no pódio? E não é só ele que anuncia o evangelho do pódio. Tem uma seita, entre as milhares que prometem milagres que diz: “Você está destinado ao sucesso”. Com Jesus o primeiro lugar nas Olimpíadas está garantido! E na vida! Teologia maravilhosa essa: Jesus Cristo morreu na cruz para que nós tivéssemos sucesso! Para que ganhássemos a medalha de ouro! Corolário: se você não está no pódio, se você não tem sucesso é porque você está longe de Deus. Pecador miserável! Arrepende-te dos teus pecados, entrega o teu coração a Jesus, não para ir para os céus, mas para ir para o pódio...

Mas há um jeito de todo mundo ter medalha e já o escrevi aqui. A idéia foi de Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas, que todo mundo leu e não prestou atenção. Porque o verdadeiro ato da leitura não está na leitura mas na ruminação. É preciso ler bovinamente, ruminantemente. Tratava-se de uma corrida. Alice queria saber as regras. O Pássaro Dodo explicou: “Primeiro marca-se o caminho da corrida, num tipo de círculo, ( a forma exata não tem importância), e então os participantes são todos colocados em lugares diferentes, ao longo do caminho, aqui e ali. Não tem nada de “um, dois, três, já”. Eles começam a correr quando lhes apetece, ou abandonam quando querem, o que torna difícil dizer quando a corrida termina.” Assim a corrida começou. Depois que haviam corrido por mais ou menos meia hora o Pássaro Dodo gritou: “A corrida terminou!” Todos se reuniram ao redor de Dodo e perguntaram: “Quem ganhou?” “Todos ganharam”, disse Dodo. E todos devem ganhar prêmios.”


Rubem Alves

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