domingo, 11 de novembro de 2012

Encântico

Estou de partida. Breve, me mudarei para a curva do teu braço.

Busco a terra sem vento, a mansa terra do teu peito. E a batida surda e quente do magma mais profundo, para embalar o meu sono. Busco a tranqüilidade da enseada. Já conheci as águas que é preciso saber. Fui bem além das colunas de Hércules e há muito descobri que por mais longe o mar, jamais despenca. Sereia, lancei meu canto por entre espumas, encantei marinheiros. E eu própria naveguei, seguindo as estrelas do céu, contando as estrelas do mar, até chegar a portos dos quais nem suspeitava a existência.

Agora é tempo de lançar as tranças na água e deixar que se enlacem nos rochedos, ancorando-me ao meu destino. Escolho o teu lado esquerdo, onde me beija o sol poente. E espero que a tua mão direita amaine as minhas selas. Assim, acima do teu coração, encosto a cabeça. E pequena como um grão, deito raízes. Aprenderei a conhecer-te através da planta dos meus pés, como o cego sabe onde pisa, como o índio conhece a trilha! Se for mansa, a maré das colinas, terei certeza de que dormes, ou pensas em silêncio. Se, de repente, meu solo se encrespar, tangido por um vento só teu, será o frio que te toca. O medo, saberei no tremor subterrâneo. E quando o suor correr farto, enchendo rios sem peixes, ameaçando me levar, será tempo de calor, será o verão cantando na tua pele.

Aprenderei a tatear-te com as mãos, a procurar meus caminhos nos valões dos músculos. Fluirei devagar, dormirei nas axilas. Não preciso de casa. Não preciso de abrigo. A terra da tua carne é quente e nada me ameaça. Posso deitar-me nua, dormir tranqüila, ou ficar acordada, olhando para o alto. O céu é calmo, as nuvens passam, indo a outros lugares. Nenhuma traz a chuva, ou a tempestade. Não preciso de pente, não preciso de panos. O orvalho da tua pele me banha de manhã e a tua respiração arruma os meus cabelos. Só quero um cavalo. Galoparei com ele as dunas do teu corpo, descerei pelos braços, avançarei pelas mãos, arriscando-me à queda nos penhascos dos dedos. Explorarei o teu ventre, matarei a minha sede no poço do teu umbigo. E, armada de desejo, penetrarei na selva dos teus pelos, emaranhada e perfumada noite, delta dos sumos, labirinto que imperioso, me chama e suave, me perde. Só depois, percorridas as pernas, visitados os pés, voltarei corpo acima, ventre, peito, subindo em peregrinação até o pescoço, repousando no vale da omoplata.

Talvez leve um cantil para a dura escalada do teu queixo. Subirei com cuidado, usando como apoio os fios de barba, procurando a caverna das orelhas para repouso e abrigo. Barulho não farei, prometo. Nada que te perturbe. Talvez no dia seguinte, ou mais ainda, passando-se outro dia na difícil subida, eu procure chegar até teus olhos. Se estiverem fechados, sentarei com paciência, esperando o milagre da íris descoberta nascer do olho que se renova a cada despertar, astro de luz, surgindo sob o horizonte da pálpebra. Se estiverem abertos, sentarei à beira deste lago, fonte, olho d'água, encantada com a dança dos reflexos, ilusórios peixes, deslizando suas sombras sob um fundo sem algas. E haverá um momento em que, vencendo o medo, mergulharei na transparência, para nadar em direção ao redemoinho negro da pupila.

A aresta do nariz é perigosa. Eu bem conheço a sua linha sinuosa, sua falsa maciez sobre o duro arcabouço. Não convém que a acompanhe. Seguirei pelo lado, encostando-me às arestas, esgueirando-me para não ser tragada. Não tentarei desvendar o mistério do sopro. À boca, chegarei com respeito. Virei pelo canto, descendo ao lábio inferior, o mais carnudo. Avançarei deitada, rastejando-me de leve na pele úmida, até chegar à borda. E me debruçarei sobre as palavras. Breve me mudo para a curva do teu braço. Não saberei mais de você do que já sei. Nem você saberá mais de mim. Mas talvez assim perto, encostada na raiz do teu ser, eu possa me esquecer de onde começo e me esquecer em ti na minha entrega.
 
 
Marina Colasanti

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