terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Ração de beleza

 
A distância que separa Campo Formoso, sertão do Caracol, de São Raimundo Nonato não chega a 60 Km. Ainda assim, transpô-la escanchado numa cangalha, no costado de um jegue, tinha a dimensão de uma penitência e durava uma eternidade. Eu disse tinha porque, hoje, até os vaqueiros do sertão campeiam gado encarapitados em motos. Justo e merecidamente, o jumento conquistou sua alforria. O certo é que gastávamos 12 horas para fazer o percurso, com direito a uma parada breve para uma refeição frugal. Tempos difíceis.

 Para quem só conhece jegue de fotografia, uma recomendação: leia o “O Almocreve”, capítulo do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra máxima de Machado de Assis. É possível que Machado nunca tenha visto um jumento de perto, mas como era “bruxo”, descreveu o “psicologia” do bicho com a mais absoluta propriedade. O jegue é um animal singular, para dizer o mínimo. Embora seja capaz de realizar tarefas bastante ásperas, sua verdadeira vocação é a vadiice, a contemplação, as refregas sexuais. É bicho sistemático: se faz frio, ele amiúda o passo; se faz calor, deita-se com a carga; se chove, aí não anda nem com ferrão. Viajar de jegue, embora não pareça, é uma atividade de certo risco. Explico: se uma jega, no cio, atravessar o caminho de um jegue “inteiro”, é quase certo que o freguês que o monta sairá machucado. Além de ser movido a rompantes, jegue não tem freio.

 Menino, fiz inúmeras viagens a jegue com direito a câimbra nas pernas, assaduras no traseiro, escoriações e alguns tombos. Para matar o tempo, ou melhor, para iludir-me em relação ao tempo, desenvolvi um estratagema: fechava os olhos e reconstituía, de memória, o que estava por vir num determinado trecho da estrada: casas, árvores, cercas, pedras, etc. Sem o saber, eu estava adubando o juízo. Havia três momentos inesquecíveis na viagem. O primeiro: o descanso na casa do tio Davi, onde havia sempre uma rede limpa, um café forte, o refrigério da sombra de um juazeiro generoso; o segundo: a parada na casa da “boleira” da Gameleira, onde se vendiam bolos de goma com o inconfundível sabor da infância (Proust tinha razão). Por fim, a contemplação da casa da velha Mercês, no sopé de uma ladeira. Era uma choupana humilde sem nada de extraordinário. Extraordinário, belo e incomparável era um pé de juá francês (buganvília), quase sempre recoberto de flores carmim. De repente, em meio à aridez da paisagem, despontava aquela catedral florida. Uma imagem condensando duas alegrias: uma visual – a beleza das flores; a outra psicológica – a certeza de que estávamos chegando a Campo Formoso.

 Dia desses, inventei um pretexto para voltar ao local onde nasci. Na verdade, eu não queria rever Campo Formoso, hoje, uma capoeira infestada de carrapichos. Queria apenas percorrer o velho caminho e saber se o juá da Mercês ainda estava vivo. Para surpresa e alegria dos meus olhos, lá estava ele: vivo, florido e belo como a claridade da hora. Parei um minuto para fotografá-lo, ou melhor, reverenciá-lo. A casa da velha já não existe, as cercas apodreceram, o mato cobriu tudo, mas o juá resiste. De repente, ocorreu-me a seguinte reflexão: quando eu nasci, aquela buganvília já estava ali; seguramente sobreviverá a mim e permanecerá no mesmo local, sem exigir nada da vida, cumprindo a sua “missão”: oferecer uma frugal ração de beleza a quem, porventura, for capaz de fruí-la.
 
Cineas Santos

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