segunda-feira, 25 de março de 2013

Sobre a utilidade e a inutilidade da história da filosofia para a filosofia e para a vida

Muito se ouve falar em história da filosofia, tema de vasto interesse nestes dias em que, para o bem e para o mal, a filosofia está em certo sentido ainda na moda. É mais que moda, mas também padeceu do seu momento “in”. Por outro lado, a filosofia chega com força, do ensino básico e médio aos cursos universitários, como disciplina obrigatória. Sua potência é a da modificação das bases da educação pelo avanço da crítica e da compreensão num território por longo tempo situado em chão dogmático ou, pelo menos, sem estofo reflexivo. Todavia, a possibilidade de uma calcificação da educação pela má filosofia, que se pensa como “saber” constituído, a “área” pertencente a eruditos inconscientes das relações sociais nas quais estão envolvidos, que não suportam a dúvida sobre seu próprio lugar, ou da filosofia pelo mau ensino, pode minar um projeto de emancipação e democracia que é tanto a tarefa da educação quanto da filosofia nos dias de hoje.

 
Neste contexto, convém evitar confusões e é por isso que a distinção entre filosofia e sua história merece uma atenção muito cuidadosa. A indistinção resulta do descuido – e convém perguntar se alguma sorte de interesse – por parte daqueles que, como professores de filosofia, são os responsáveis pela reintrodução da filosofia no ensino brasileiro ou mesmo por sua divulgação. Ponderá-la, é o primeiro passo filosófico na compreensão, e na promoção, de um novo estatuto, tanto para o que podemos chamar filosofia, quanto para o que é hoje o seu ensino baseado muitas vezes apenas em sua história extirpando-lhe a tarefa reflexiva, o pensamento como potência particular e coletiva.
 

Para situar os aspectos desta diferença que tem muito de sutil não é possível escapar das semelhanças, das afinidades entre o que é filosofia e a história da filosofia. Que uma esteja dentro da outra, que a filosofia que conhecemos derive de textos tão bem conservados por sua força conceitual, que aquele que fala de filosofia necessariamente a reconheça como uma tradição de pensamento que envolve justamente a capacidade da dúvida e da refutação da própria tradição, são fatos que não podemos desconhecer. É claro que sua relação é de necessidade. Só a filosofia pode ser recepção crítica da tradição da própria filosofia como viagem do pensamento humano no tempo. Neste sentido, é claro que a história é essencial. Recepção crítica, todavia, é atividade filosófica que pode ser eliminada se as instituições simplesmente o quiserem fomentando apenas a pesquisa que, levando adiante uma má historiografia, apenas repete e assina embaixo conceitos do passado como se o passado não fosse “interpretado” ou “compreendido” (em duplo sentido) no presente. Como se o passado não sofresse os efeitos de nossa fantasia e nosso desejo sobre ele. Uma boa história da filosofia seria o contrário da fossilização forçada dos conceitos que vemos hoje. Seria diálogo e constante crítica com o que foi pensado e estabelecido como tal, mas com vistas a uma reflexão quanto ao estatuto do tempo, da relação entre passado e presente no qual cada pensador está, querendo ou não, situado. Um pensador só é lembrado por outro que o atualiza e, querendo ou não, o adapta ou modifica. A não ser, claro, que ele seja, por devoção pessoal, ou necessidade subjetiva (o que sempre sobrevive no texto é a alma do autor), um sujeito anacrônico, assim “fora” do tempo, um clássico, ou alguém perdido. Ninguém está proibido de anacronismo. Em filosofia cai muito bem. Tão bem que podemos dizer que o anacronismo é um direito. Mas há que justificá-lo quando se ensina filosofia. Esta postura, aliás, poderá contradizer o “anacronista” fazendo dele um homem de seu tempo.

 
História da filosofia deveria ser análise crítica do passado sob a consideração de uma cuidadosa conceituação de passado. Mais que isso, ela precisa ser diálogo da atualidade do pensamento com este passado levando em conta o que pode significar “atualidade do pensamento”. Ninguém que estude filosofia, que se preocupe com o pensamento,de ada filosofia por seu mau ensino, será capaz de imaginar que, cada vez que pensa, reinventa conteúdos como quem acredita que reinventa a roda. Ao mesmo tempo não podemos fomentar o preconceito contra o novo.
 

Dizer, porém, que no pensamento atual, ou nos modos em que pensamos hoje, não há nada de novo é muito diferente de falar em diálogo com a tradição. A filosofia, para continuar constituindo-se como a caminhada, o passeio dos seres humanos como seres que expressam sua compreensão e autocompreensão, seja no olhar para o passado seja no projeto futuro ao qual ela deve estar atenta e que a inclui como fator cultural, deve ser acima de tudo liberdade do pensamento. Criação de pensamento. Pensamento capaz de abismar-se no que o nega. Pensamento que se torna diálogo, abertura ao outro, aventura na alteridade. Não há contribuição maior da filosofia histórica ou não para o nosso tempo do que a oportunidade de promover o diálogo em nosso mundo, seja entre indivíduos, seja entre culturas, seja entre perspectivas de mundo, de vida que, mal relacionadas, permanecem em guerra.

 
Dizer, portanto, da diferença entre filosofia e história da filosofia não é sinalizar um abismo entre o tempo passado e o tempo presente, ou um combate à tradição, nem, muito menos, quer dizer que a filosofia deve ficar longe de sua própria história, ou separada dela como de algo nocivo, que lhe fizesse mal. O contrário é que tem sido feito, sobretudo na ideologia conservadora brasileira de que “filosofia é história da filosofia”, infelizmente professada por alguns professores que esqueceram que a ditadura já acabou.
 

Seria fundamentalismo ou ignorância postular uma origem absoluta da filosofia no tempo presente de qualquer consciência tanto quanto numa história passada que desconhece o presente, e seu próprio devir. A filosofia longe de sua história não é, de antemão, nenhuma garantia de filosofia. Antes, a própria questão precisa ser bem posicionada para evitar mal-entendidos. E certamente, esta questão implica a questão “o que é, pois filosofia?”

 
Do que se trata, então? De posicionar por meio de uma distinção o lugar específico do pensamento filosófico como uma ação crítica e discursiva livre de toda pressuposto que não seja justamente a crítica e a discursividade que se auto-expõe no lugar que lhe é de direito, o da elaboração analítica e crítica da qual ela nasceu. Uma boa história da filosofia nasceria neste lugar.
 

Quando se trata de filosofia, começamos com o pensamento reflexivo. Mesmo para a história da filosofia precisamos antes da filosofia, como método de análise sobre um objeto, neste caso, construído como “história”. Se trata, no caso de fazer filosofia, de pensar e fazer pensar, de produzir e criar pensamento como se cria uma obra de arte, uma obra científica, sabendo, no entanto que a reflexão sobre a vida não é nem arte, nem ciência, mas experiência de pensamento.

 
Disso resulta um valor, uma potência: a de uma ideia chamada liberdade. Uma liberdade – muito diferente da liberdade dos liberalismos – que é uma esperança, que é uma libertação, um desejo de estar “fora”, mergulhando na surpresa da reflexão. Para definir o que seja filosofia podemos invocar pensadores antigos ou modernos, podemos invocar o percurso histórico das questões, analisá-las dentro do tempo e das culturas nas quais nasceram, se desenvolveram ou nas quais permaneceram vigentes. Em qualquer tempo, filosofia é sempre criação de conceitos. Filosofia é ir além da filosofia inventando conhecimentos/prazeres novos.
 

A escolha por uma filosofia como História da Filosofia se tratada com pouco cuidado pode ser a própria aniquilação da filosofia. Desconhecimento de seu processo, de que a história também é uma teoria.

 
Contra isso, vamos ao diálogo.
 

 
Márcia Tiburi

 
Do Filosofia Cinza

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