sábado, 9 de março de 2013

Variações Roland Barthes


Avanço, aos saltos e trancos, choques instáveis, na leitura de "Como viver juntos", as notas dos cursos e seminários dados por Roland Barthes no Collège de France no ano letivo de 1976-1977. Leio na edição espanhola da Siglo Veintiuno, de Buenos Aires. Barthes é sempre disperso, complexo, perturbador. Seu livro abre diante de mim uma seqüência enlouquecedora de caminhos, de abismos, de sendas, sobre os quais eu me equilibro como posso.

          Ando com Rubem Braga na cabeça. É o ano do centenário de seu nascimento - em 12 de janeiro de 1913 _ e, como sou autor de um pequeno livro sobre o cronista ("Na cobertura de Rubem Braga", José Olympio, com nova edição chegando ao mercado), a toda hora me solicitam depoimentos, entrevistas, impressões. Eu mesmo, de modo torto e desengonçado, me considero um cronista _ já que exigem que a gente se considere, sempre, alguma coisa. Não tenho tanta certeza disso, apenas adoto a denominação, "cronista", porque ela me parece leve e confortável. Mas sem nenhuma convicção, deve admitir.

          Volto a Barthes _ e ao modo como ele me trouxe de volta a Braga. Em dado momento de "Como viver juntos", mais exatamente na página 191 da edição argentina, esbarro com uma breve nota, de sete linhas, sobre a digressão. Como vocês sabem, a digressão é a grande rte do cronista. A digressão e a fuga. Você começa a escrever sobre uma coisa, passa para outra, é atraído por uma terceira e, de repente, já não sabe mais onde está. Pronto: escreveu uma crônica. Nada daquele acabamento "redondo" exigido (pobre deles!) dos contistas. Nada daquelas palavras precisas que se esperam de um poeta. Divagação, flutuação, digressão, dispersão _ eis a arte da crônica.

         É também, na música erudita, a arte da fuga _ gênero que se define por uma longa série de variações obtidas a partir de um mesmo tema principal. Variações que o deformam, que o destorcem, que o aniquilam e até matam. Quase nada dele resta: eis a fuga, que um grande compositor como Bach praticou com tanto brilho. Pois Barthes não pensa em Bach, mas em Beethoven e em suas célebres 32 "Variações Diabelli", variações para piano que o compositor alemão criou a partir de uma valsa do austríaco Anton Diabelli (1781-1858).

         Volto à digressão, arte que define não só a fuga (na música), mas a crônica (na literatura). Diz Barthes que a digressão é uma espécie de "não-método". Trata-se de um momento em que o músico se permite justamente isso: o direito ilimitado à dispersão, à fuga do tema principal, à dança enlouquecida e ao escape. Um pouco, também, como acontece com o jazz, que fuga não deixa de ser. Assim trabalha o cronista: permitindo-se vôos inesperados, em direções imprevistas. Como se ele esmigalhasse sua bússola, preferindo navegar às cegas.

         Escreve Barthes: "Se poderia inclusive imaginar, tendenciosamente, uma obra, um curso, que não estaria feito mais que de digressões, a partir de um título fictício: o tema estaria destruído pela astúcia da fuga incessante". Leitores já me disseram, com outras palavras, que é isso o que eu mesmo faço neste blog. Daí eu adotar, cheio de dúvidas, a denominação de cronista. Está bem: se querem um nome, lhes dou este nome. Mas não tenho certeza alguma do que lhes dou _ como se lhes presenteasse com um embrulho lacrado, comprado por outra pessoa.

         Lembra Barthes que, nas "Variações Diabelli", de Beethoven, o tema é quase inexistente. "Uma recordação muito vaga atravessa como relâmpagos as trinta e duas variações, cada uma das quais é, assim, uma digressão absoluta". O tema _ como acontece também na crônica _ é quase uma desculpa. Uma fantasia. Uma suposição. O compositor (o cronista) "finge" que tem um ponto de partida, e simplesmente parte. Algo que só lhe dá alguma segurança, e mais nada. Ou então: sequer se dá ao trabalho de simular o ponto de partida inexistente. Nesse caso, age como um nadador desprovido de um trampolim e, aos arrancos, alça vôo para, logo depois, se lançar no vazio.

         Vejam como são estranhas as leituras, como elas nos levam a variações inesperadas. Comecei com Barthes, passei por Beethoven e cheguei a Rubem Braga. Ou parti (sem pensar que partia) de Braga e usei Barthes e Beethoven como desculpas. Qual foi meu "verdadeiro" caminho? E isso interessa? E isso é pergunta que se possa, de fato, responder? Que se deva responder?

         Lembro, por fim, para divagar mais um pouco, que o verbo "variar" tem, também, o significado de "delirar", ou mesmo de "enlouquecer". Na infância, Angela, minha irmã mais nova, tinha uma professora de piano que sofria do labirinto e, nas crises mais ferozes, entrava em estados de grande confusão mental. Pois bem: nem me recordo (é melhor) o nome da professora, só lembro que todos a chamávamos de "A Variante". Assim também teóricos (Barthes), músicos (Beethoven), cronistas (Braga), e eu mesmo (por que não, embora parece esnobe?) somos, todos, "variantes". Pensando bem: será a vida outra coisa, senão pura variação?
         Pobre dos rígidos, dos homens cheios de si e cheios de certezas, dos pregadores de verdades definitivas, daqueles que "sabem o que querem". Terão tudo, menos a vida.
 
José Castello
 (CASTELLO, José. Variações Roland Barthes. In: www.oglobo.com.br/blogs/aliteraturanapoltrona/27-02-2013.)
 
*Sugestão de postagem do amigo Adauto Neto

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