sábado, 25 de maio de 2013

Dois momentos de um mesmo amor em Rilke

"Mas que é daquele que já sabia? Daquele em cujo coração já se apresentava a solidão dos amantes? Ele conhecia de antemão a pura face da amada. Ao fugir às semelhanças familiares que o envolviam, as quais constituíam, traço por traço, um direito sobre ele, o semblante dela veio a se tornar o seu próprio futuro; através dos olhos dela, comtemplava o aberto.

"A sua pequena mão pousava calmamente sobre a dela, a qual o conduzia e jamais dele se apossava. Enquanto crescia, ia ele distinguindo mais e mais a sua alta figura — naquele tempos ela por vezes aparecia e o examinava como se fosse um dardo de
arremesso.

"E mais tarde, arremessou-o.

"Ah, com que poderia a amante surpreender aquele que, mais do que uma recordação, tinha a clara consciência disto: desta escolha; a volúpia do braço que se estende, o ser arremessado — oh, e o tremor ao atingir o alvo."

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"De que serviu saber que eu só podia estar feliz e comovido em meu trabalho?! E mesmo mais tarde, mesmo agora, mesmo nestas últimas semanas, não acedi  à consciência de minha natural solidão, o único meio de me tornar senhor de mim mesmo.

"Meu coração deslocou-se do meio de seus círculos em direção à periferia, para o lugar mais perto de ti — por mais aí que ele seja grande, sensível jubiloso, ou timorato, não se acha em sua constelação, não é o coração de minha vida.

"Em nossos momentos mais doces e talvez mais justos, amada, asseguraste-me que podias abarcar todos os tipos de amor para mim. Ah, controla-te, ......, resume-te àquela que, tenha o nome que tiver, assegura a minha vida, fortalece-me como pode.

"Não posso escapar de mim mesmo. Pois se eu desistisse de tudo, tudo, e me atirasse cegamente a teus braços, como por vezes desejo, e aí me perdesse, terias contigo alguém que houvera desistido de si mesmo: não seria a mim que terias, não a mim."

In
Rainer Maria Rilke. Testamento. São Paulo: Globo, 2009 Prefácio de Helmut Galle. Tradução: Tercio Redondo (2 fragmentos)

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