quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Quando Deus não olha

Quando se fala em literatura jovem, em prosa de ficção escrita por jovens (autores com menos de 30 anos), parece haver (já vi isso ser dito entre editores, críticos, autores) um pressuposto de que serão livros falando em sexo, drogas e rock-and-roll. Eu nada tenho contra estes importantes fatores, mas, vamos e venhamos, nada disso é privilégio jovem. Esqueçam o clichê. Cada jovem tem seus problemas e seus horizontes, no que diz respeito à literatura. Literatura não é ilustração de uma tese sociológica. Literatura é seiva da vida espremida até se tinturar de sangue.

O maior problema do jovem, diria eu, é tornar-se adulto: jogar o jogo adulto. O romance de Débora Ferraz, Enquanto Deus não está olhando (Record, 2014, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura) é a história de uma moça de vinte e poucos anos e seu difícil ajuste de contas com a vida: com a perda do pai, com a possível perda do namorado, com um trabalho onde se sente enjaulada e encolhida, com a opção de ser artista plástica (coisa que a família estranha e não assimila) e assim por diante. É um livro de ação constante, de idas e voltas, procuras, derrotas, desencontros, aquela agitação que todos conhecemos: no fim do dia se tem a sensação de que vinte coisas foram resolvidas e não se avançou um passo.

O livro transcorre numa João Pessoa jamais nomeada, e só reconhecível por sabermos que é lá que a autora mora. Cenas como a do reveillon na praia, por mais que a reconheçamos, não devem ser muito diferentes em outras cidades. Não há nomes de ruas, de praças, mas é uma João Pessoa palpável e familiar, tal como a Campina Grande que José Nêumanne descreve, também sem nomear, no seu O Silêncio do Delator.

Não sou grande leitor de livros longos, mas o fato é que tracei sem cansaço ou esforço as 366 páginas do livro. São jovens que tomam cerveja, conversam sobre o futuro, queixam-se dos pais. A ausência de nomes próprios (seja de bares, de canções, de marcas, de lojas, de pessoas da cultura pop e da TV) dá ao livro um aspecto curiosamente realista, numa literatura que, anêmica de sentido, torna-se cada vez mais referencial, atulhada de marcas, nomes e citações. A realidade onde os personagens circulam em suas espirais intermináveis, que nunca avançam, é uma realidade feita de ações, pessoas, sentimentos; aquilo poderia ser o Irã ou a Bélgica. Apesar disso, e na verdade por causa disso, é um livro essencialmente paraibano (sem regionalismo, mas é a Paraíba por onde caminho hoje em dia) e provavelmente brasileiro. Nessa cidade transparente e neutra, os personagens são só eles mesmos, e é só com isto que podem contar.
 
Bráulio Tavares
(mundo fantasmo)

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