quinta-feira, 19 de março de 2015

Aquilo que me escapa

         Ler um poeta desconhecido é a travessia de um abismo. Você não sabe onde está pisando. Sofre do inevitável medo de não ver. A cegueira _ os preconceitos, os clichês, as opiniões congeladas _ podem, de fato, turvar a leitura. Medo de ceder e de cair. Conheço Caê Guimarães pessoalmente. Por duas vezes, em anos diferentes, ele foi meu entrevistador em eventos literários no Espírito Santo. Mas o que isso realmente significa? Nada. Ao abrir Vácuo (editora Cousa, Vitória), defronto-me com um desconhecido.

          É verdade que a literatura é filha da contaminação. “Somos feitos da mesma velha mistura/ sangue e sonhos/ violência e ternura”, o poeta escreve. No mesmo poema, Caê ainda me oferece uma advertência: “perceba o quanto tudo é pouco/ e siga em frente”. É o que tento fazer. Ainda sugere mais: “abrace o vazio que parece ser simplório/ mergulhe no transitório/ e barbeie-se com a navalha do esquecimento”. Não é fácil, mas um leitor precisa _ na medida do possível, que é sempre impossível _ despir-se de si. Não adianta: carregamos nosso inevitável corpo. Arrastamos nosso espírito. Devemos aceitar que ler só pode ser uma deformação.

          Começo pelo título do livro. Vácuo, isto é, me ensina o Houaiss, “que nada contém, absolutamente vazio, oco”. Estranho livro que, já pelo título, se apresenta como nada. Coisa alguma. É com as mãos vazias, portanto, que me ponho a ler _ como se avançasse na leitura de um livro inexistente. Em outro poema, Caê me ajuda um pouco. Ele me oferece uma definição pessoal: “o vácuo/ entre o início e o fim/ a que chamamos de meio”. Estou a meio caminho de _ e, de fato, a poesia não tem fim, ela parece sempre transbordar dos versos. Leia Vinicius, leia Cabral, leia Hilda Hilst, leia Orides Fontela. Fechamos seus livros, mas o atordoamento continua. A poesia continua, feito uma mancha, uma nódoa de que não conseguimos nos livrar. Sim: temos o espírito formado por leituras, mesmo aquelas que foram esquecidas.

          Ler (está em outro poema) é abrir “uma porta para o lado de dentro”. Livros nos escavam. Livros nos interrogam e devassam. Não temos escapatória _ ou nos deixamos invadir pela voz alheia, ou não lemos. Se fugirmos, limitamo-nos a patinar sobre as palavras. Tento, então, acessar as palavras de Caê. Primeiro passo: escutar (um pouco, pelo menos) sua própria voz. Ele mesmo nos deixa a advertência: “assim como é da natureza da lua despertar o lobo e seu assovio/ é da natureza da carne cicatrizar a ferida e deixar no couro um dolo”. Ouvir um poeta _ escutar seu assovio. Deixar-se ferir por seus versos, à espera da cicatriz salvadora que será a palavra própria.

          Não é fácil. Pois, adverte Caê, a palavra fica “na borda de tudo que entorna”, seja o silêncio ensurdecedor, seja a prosódia sem fim. Um poeta escreve sempre no limite _ e é justamente essa fronteira que eu, como resignado leitor, me empenho em acessar. Até onde a poesia de Caê Guimarães se estende? Que vazios, que vácuos, que ocos ela recobre? Para chegar a uma resposta, e por mais que um leitor lute para se manter de pé, é preciso ceder. A queda inevitável diante da palavra plena.

          Sugere Caê: “mira atento e leve o que está no fim/ no início/ e no meio/ deixa que o universo inteiro te percorra”. Não é fácil suportar a voz alheia, pois ela é sempre uma ameaça. A leitura é um jogo. De um lado, o poeta se ergue. De outro, o leitor se defende _ mas quanto mais se defende, para sobreviver inteiro, mais se deixa afetar. Essas afetações (feridas) são a própria leitura. Tudo gira, diz o poeta, “tornando/ o final/ no meu começo”. Somos engolidos _ ou não lemos.

          A vida _ a leitura _, ele nos adverte em outro poema, está espremida entre dois silêncios. “Um silêncio, um uivo, um silvo”. A voz do poeta é tão frágil quanto eles. Deve ser capturada com a armadilha da delicadeza, ou se perde, se esfarela – ela se torna o que não é. Adverte, ainda, Caê: “não há rota ou bússola”. A leitura é uma aventura às cegas. Todo leitor é um cego que, lutando contra sua própria natureza, insiste em ver. Nova advertência vem em outro poema: “conjugue verbos contrariado/ não seja modulado e perfeito”. Não há que acertar _ há que se expor. Estamos todos, ele diz, a “navegar sobre o fio”. Estamos sempre a meio caminho de _ no vácuo, no “entre” de que o título nos fala.

          O leitor também deve dispensar as certezas a seu próprio respeito. É, mais uma vez, o poeta quem nos orienta: “após um rosto há outro/ e na camada de baixo mais um/ difícil saber qual deles melhor me traduz”. Posso avançar um pouco mais: a cada leitura, um rosto. A cada página, um leitor. É claro: há um fio que permanece _ essa fibra sutil que é nosso espírito. Há algo no leitor que nunca se modifica. Não é preciso temer: a leitura não vai nos despedaçar. Feridas não são facadas. Um ferimento _ um verso, uma linha, uma palavra _ não é a morte. Está muito mais próximo da beleza.

          Por isso, porque um caroço sempre permanece, não há que temer o desvio de si. Um leitor deve pensar assim: “entro no labirinto/ e deixo de lado de fora o novelo”. O poeta pode estar falando não das palavras, mas de um corpo amado. No lugar da leitura, o erotismo. Mas não há sempre uma sutil excitação no ato de ler? Toda escrita poética é uma torrente. Diz o poeta, com firmeza: “eu chovo torrencialmente no deserto mais seco/ e no degredo reconheço a geografia do espanto”. Mais uma vez, Caê nos ajuda a ler o próprio Caê. O livro se enrosca sobre si mesmo e se torna seu próprio espelho.

          O precário leitor precisa, ainda, se conformar com a ideia de que, assim como ele, o poeta também se alimenta de segredos. Ele tem imensa “sede de me perder nos fios sedosos do segredo”. A leitura é um contato (uma ponte?) entre dois segredos. Eles não se desvelam, mas ainda assim se alimentam. Transitam no imenso vazio que os une, mas também os separa. Nunca entramos, de fato, na escrita alheia. Algo sempre me escapa. Embora nos desloque e atordoe, ela, do mesmo modo, nunca nos captura a alma. Ler um poeta é dizer ao poeta: “Sim, eu o ouço”. E como é reconfortante o murmúrio que ouvimos como resposta.


                 (Texto publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO no sábado 14/03/2015)



JOSÉ CASTELLO



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