quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Natalia chega a si

Vivemos um tempo de narrativas forçadas. Relatos artificiais, escritos para cumprir fórmulas, para conquistar vantagens ou para responder às expectativas alheias. São projetos que só levam ao fracasso e mais a lugar algum. Lentamente, maldosamente, eles debilitam a literatura. Por isso me reconforta muito ler “O meu ofício”, o mais inspirado capítulo de "As pequenas virtudes", coletânea de onze textos breves da italiana Natalia Ginzburg (Cosac Naify, tradução de Maurício Santana Dias).
Natalia (1916-1991) não nos oferece fórmulas mágicas. Tampouco esboça qualquer caminho de salvação. O comovente em “O meu ofício” é que tudo o que ela escreve é muito simples. Mas é justamente por isso que espanta e surpreende. Sabe Natalia que um escritor deve se preocupar apenas consigo mesmo. Fugir de modelos, de ideais, de aprovação. “Quando escrevo, nunca penso que talvez haja um modo correto do qual os outros escritores se servem”, ela diz. “Não me importa nada o modo como os escritores fazem”.
Centrada só nas coisas que tem a dizer, é assim que Natalia nos diz grandes coisas. Recorda que, em um período no qual tentou escrever ensaios de crítica ou artigos de encomenda “a coisa saía bem ruim”. Não é que a escrita se assemelhe à navegação em um barco desgovernado. Não é isso. Acontece que só o escritor pode descobrir sua direção e seu destino. Só ele deve inventá-los — e mais ninguém. Às vezes parece tolice. Outras vezes, simples demais. Nada disso importa. Importa que seja escrito com verdade. Importa que um escritor não traia a si mesmo, nem se desvie daquilo que ele é.
Antes de inventar, um escritor deve aceitar. Durante um tempo, Natalia cismou de escrever poesia. Ainda não entendera que errara de ofício — que seu destino era a prosa, e não o verso. Escrever poemas lhe parecia fácil. Mas “quando os mostrava a meus irmãos, eles davam risinhos e me diziam que seria melhor se eu estudasse grego”. Ainda assim, se agarrava à poesia. Na escola, em vez de estudar grego, ou latim, ou matemática, passava os dias escrevendo versos, “sofrendo muito e me sentindo uma exilada”. Custou a entender que, escrevendo poesia, estava exilada de si mesma.
Quando escreveu o primeiro conto, teve o sentimento de que experimentava um milagre. “As palavras e frases de que me servira foram pescadas assim, ao acaso: era como se eu tivesse um saco e fosse tirando dele ora uma barba, ora uma cozinheira negra, ou outra coisa que se pudesse usar”. Agora a escrita deixava de ser um jogo para se transformar em um destino.
Aos poucos, contudo, Natalia se encontrou com o oposto dessa alegria: defrontou-se com a solidão do escritor. Nas horas em que ele escreve, “tudo se distancia e some e ele está só com a sua página, nenhuma felicidade ou infelicidade pode subsistir nele se não estiver estritamente ligada a essa página”. Sustentar a própria voz exige uma imensa solidão. Naqueles momentos, é como se o resto do mundo desaparecesse e restasse só aquela folha de papel. O escritor precisa suportar o sentimento de que “não possui outra coisa nem pertence a ninguém e, se não for assim, então é sinal de que sua página não vale nada”.
Durante um tempo, lutando para se poupar da dor da escrita, Natalia passou a andar com caderninhos em que anotava as ideias que lhe surgiam. Aos poucos compreendeu que os cadernos se tornavam só “uma espécie de museu de frases”, já que nada daquilo era usado depois. “Compreendi que não existe poupança neste meu ofício”, ela diz. O escritor deve ter a coragem de escrever com as mãos vazias. Só com as mãos vazias ele pode, enfim, ceder espaço à fantasia. “Se alguém escreve um conto, deve por dentro dele o melhor que possui”.
Ensina Natalia que um escritor deve fugir do excesso de caracterizações — dos “fantoches” — para chegar a construir personagens verdadeiros. “Na época eu não entendia que não se tratava mais de personagens, mas de fantoches, muito bem pintados e semelhantes a homens de verdade, mas fantoches”. Foi muito difícil para ela se livrar dos clichês, das representações falsas, dos simulacros. Com eles, a escrita parecia avançar, quando na verdade retrocedia. Foi difícil descobrir que, com esses excessos, fazia uma ficção morta. “Levava cá dentro um fardo de coisas embalsamadas, faces mudas e palavras de cinza”, descreve.
Precisou, então, de um período de desconfiança, quando se tornou mãe e passou a dar mais importância aos filhos do que à escrita. “As crianças me pareciam algo muito importante para que eu me desviasse atrás de estúpidas histórias”, relata. Apesar disso, secretamente, a literatura resistia dentro dela — e resistia porque não era uma afetação, ou uma pose, mas era verdadeira. Nessas horas, “sentia uma feroz nostalgia e às vezes, à noite, quase chorava ao lembrar como meu ofício era belo”. A lembrança da beleza limpou seu horizonte dos exageros e das ênfases. Antes de voltar a escrever, precisou também livrar-se do desejo de “escrever como homem”. Precisava partir de si mesma, ou não escreveria nada que prestasse.
Também entendeu que é difícil escrever com alegria. A literatura sempre dói. O que falta aos escritores quando eles são felizes é “uma relação íntima e terna com nossos personagens, com os lugares e as coisas que contamos. O que nos falta é caridade”. Isto é: compaixão. Aprendeu ainda a considerar os efeitos do real sobre a escrita. Como é real nunca é simples, como ele é confuso e complexo, resulta que “a beleza poética é uma mistura de crueldade, de soberba, de ironia, de ternura carnal, de fantasia e de memória”. Só impregnado dessa mistura que caracteriza a realidade um escritor está pronto para começar.
A última coisa com que um escritor deve se importar, nos diz Natalia ainda, é com o valor do que escreve. Não existem promessas, não existem garantias. As medições e pesagens são inúteis. Um escritor, ela diz, deve aceitar seu tamanho e não se deixar afetar por isso. Confessa: “Há um cantinho de minha alma onde sempre sei muito bem o que sou, isto é, uma pequena, pequena escritora. Juro que sei. Mas não me importa muito”.
José Castello

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