segunda-feira, 27 de março de 2017

"Sagarana": "Minha Gente"

Ilustração Poty
 
“Minha Gente” é o quinto conto de Sagarana, de Guimarães Rosa (1946). Foi o terceiro conto a ser escrito para o livro, segundo comentário do autor, incluído nas duas primeiras edições e retirado nas seguintes.

Num depoimento-carta, bem longo,  para o jornalista João Condé, incluído no livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa  (Nova Fronteira, 1983, p. 331-337), Rosa comenta assim a história:

MINHA GENTE – Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais.

É um conto considerado menor dentro do livro, mas para mim é um dos mais bem amarrados, embora não pareça. É inclusive um conto cujo desfecho, no último parágrafo, nos leva a rever a história inteira com outros olhos, embora não chegue a ser uma surpresa mirabolante, e sim um mero cair da moeda, que girava, para um dos dois lados.

O Narrador do conto é um rapaz que vai passar uns tempos descansando na fazenda do seu tio Emílio. Lá reencontra a prima Maria Irma, com quem tivera um namorico na adolescência. O tio está enfronhado nas disputas eleitorais do município. O rapaz passeia, pesca, troca idéias com os moradores, azara a prima, presencia um crime. Não acontece nada de excepcional.

É uma historinha de amor no meio rural, mas um meio rural já consciente do moderno, do poder gravitacional da cidade grande (como ocorre também em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”).

O Narrador volta disposto a reencontrar o passado: no vilarejo “a ladeira para a Rua de Cima ainda é "a mesma”, “a casa do Juca Cintra ainda tem a mesma pintura”, e por aí vai. Mas quando ele bota o pé na fazenda do tio tudo muda. O tempo passou. O tio está galvanizado pela campanha política, e a prima está mais crescida, mais bonita e mais sabida. O Narrador começa a arrastar uma asa firme na direção dela.

O tema da ida-e-volta, presente em todo o Sagarana, se orquestra nesse rencontro do Narrador com sua adolescência transformada, e o modo como ele, ainda ameninado, é manipulado pelos que cresceram mais depressa. E ecoa no nome da prima Maria Irma, quase um palíndromo, que se lê indo-e-voltando.

Outros elementos dão o tom da história. Um deles é Santana, o amigo mais velho que o Narrador reencontra logo no começo. Um típico interiorano de Rosa, que gosta de jogar xadrez e de citar a Odisséia de Homero. Descrevendo com propriedade os movimentos e a dinâmica do jogo, Rosa nos adverte de que o “modo enxadrístico de pensar” não é estranho ao autor.

Outro elemento é a política local (para o brasileiro médio, a única política que é possível compreender e ver com entusiasmo). Ele descreve o tranxinxim estratégico do tio Emílio num parágrafo saboroso:

Política sutilíssima, pois ele faz oposição à Presidência da Câmara no seu Município (no. 1), ao mesmo tempo que apoia, devotamente, o Presidente do Estado. Além disso, está aliado ao Presidente da Câmara do Município vizinho a leste (no. 2), cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial do município no. 1. Portanto, se é que bem o entendi, temos aqui duas enredadas correntes cívicas, que também disputam a amizade do situacionismo do grande município ao norte (no. 3). Dessa trapizonga, em estabilíssimo equilíbrio, resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil.

Não parece; mas é o tema do xadrez quer retorna com outro figurino. Sempre o tema das mil variantes de ataque e defesa, de pergunta e resposta, de aproximação e afastamento, de sedução e separação.

O grande momento dramático do conto é o assassinato de Bento Porfírio, um morador local que acompanha o Narrador em suas pescarias. Bento Porfírio está metido em um caso intrincado de amor e adultério (como ocorre em “A volta do marido pródigo”, “Duelo”, “Sarapalha”). Casado, está tendo um caso com uma mulher casada.

Um dia a pescaria é interrompida pelo surgimento do marido da outra, Alexandre, que o mata com uma foiçada. Olha o modo rápido e entrecortado como o assassinato é descrito:

Fui testemunha. Pode lá a gente ser mesmo testemunha? Não sei como foi: um grito de raiva, uma pancada, o t’bum n’água de uma queda pesada, como um pulo de anta. Alexandre, o marido, de calças arregaçadas. Só as calças arregaçadas, os pés enormes, descalços na lama... Um ramo verde-maçã, a se agitar, em rendilha... Daí, a foice, na mão do Alexandre... O Alexandre, primeiro de cara fechada, depois com um ar de palerma... A foice, com sangue, ficou no chão. A água ensanguentada... O Alexandre vai indo embora. Já gastou a raiva. O morto não se vê. Está no fundo.

Bento Porfírio tinha perdido a chance de casar com a de-Lourdes, cujo pai o queria para genro. Não se interessou em conhecê-la. Quando a conheceu, ela já estava casada com o Alexandre. Ele se apaixonou e se arrependeu. O que fez? Casou com a Bilica, “só por pirraça e falta do que fazer”. E o quadrângulo amoroso ficou formado, pois Bento e de-Lourdes se embrenharam num amor que terminou numa foiçada à beira-rio.

O xadrez, a política e o crime são elementos fortes que dão o tom do conto. Porque o conto na verdade é sobre outro quadrângulo amoroso, que nos lembra o famoso poema “Quadrilha” de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria...”

O Narrador começa a achar que ama a prima Maria Irma, mas descobre que ela tem um amigo muito gentil chamado Ramiro, que lhe empresta livros, o que acaba gerando ceninhas de ciúme; mas Ramiro é noivo de Armanda, grande amiga de Maria Irma, então tudo bem.

O Narrador elogia a prima sem parar. Inclusive relata, logo na chegada à fazenda, um episódio típico do que hoje se chama “mansplaining”, o vício masculino de dar às mulheres longas explicações sobre qualquer assunto antes mesmo de perguntar o que elas pensam a respeito:

Tolamente, fui empunhando a conversa. E o pior foi que minha prima me deixou discorrer, muito tempo, e eu procurava abaixar o nível do discurso, porque punha pouco preço no poder da sua compreensão. No fim, muito maldosa, com duas ou três respostas, deixou-me atônito. Tive ímpetos de gritar: -- Priminha, o falado até aqui não vale! Vamos riscar a conversa e principiar tudo de novo!...

Dubitativo, distraído, com a cabeça cheia de vacilações, o Narrador vai se deixando enredar. Quando acusa Maria Irma de estar interessada no Ramiro, a prima não faz outra coisa senão lembrar que Ramiro é noivo da Armanda, e começa a elogiar a amiga:

É muito bonita, foi educada com parentes no Rio, já esteve na Europa, é filha de fazendeira – porque o pai já morreu -, mora no Cedro... (...)  Da minha altura. Mais cheia de corpo... É bonita... (...) E guia automóvel muito bem. É saída... (...)  É muito desembaraçada... Independente... Moderna...

O Narrador é um inocente simpático e vai se deixando enredar. Quando se aproxima da prima querendo coisa, pensa consigo que se trata de “ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática... Um ‘gambito do peão da Dama’, como Santana diria”. Ele sabe que o jogo amoroso é um xadrez.

A política, também, e ele acaba ajudando sem querer o tio quando visita um adversário político deste e, tendo feito comentários inocentes, recebe do tio o elogio: “você costurou certo”. Costurou sem querer, porque o jogo político é aquele em que o adversário diz que vai viajar e a gente deduz que aquilo é para a gente pensar que ele vai ficar em casa, e que portanto o mentiroso vai viajar mesmo. Como na negociação do bezerro entre o tio Emílio e um fazendeiro amigo, minuciosamente narrada com suas idas e vindas.

No final, o partido do tio ganha a eleição e o Narrador, que tinha ido visitar outra fazenda, volta e reencontra quem? Maria Irma ao lado de Armanda:

Alguém riu. Era Armanda, a de maravilhosa boca e olhos esplêndidos. (...) Andamos. Calados. Crescia em mim uma coisa definitiva, assim como a impressão de já conhecê-la, desde muito, muito tempo. Nossas mãos se encontraram, de repente, e eu senti que ela também estremeceu.

Há histórias que vão o tempo todo numa direção, e no final dão uma guinada para outra, e só então percebemos para onde a história estava indo o tempo todo, com seus subterfúgios da política, suas estratégias de xadrez, sua arte de resolver os desencontros amorosos de maneira mais diplomática e moderna, sem tragédias e sem foices. E o conto se fecha com esse parágrafo exemplar:

E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.

Ou, como disse Shakespeare ao tratar de situações semelhantes: “Tudo está bem quando acaba bem”, principalmente se deixarmos que as mulheres façam o corte e a costura das alianças amorosas.
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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