sábado, 11 de novembro de 2017

A outra sociedade



Arrojamo-nos aos actos quase sempre temerariamente. Não foi differente quando aluguei trinta minutos, naquellas tardes sabáticas dos annos de 1988 e 1989, da rádio Bom-Sucesso, situada na cidade de Pombal, urbe parahybana, assinalada a gestar em seu útero e nutrir em seus úberes filhos ilustres para logo delles se ver despojada.

No baptistério reservado de minha phantasia, resolutamente chamei à programação selecta daquella exígua meia-hora: "Sociedade Alternativa". O que queria dizer com isso? Por que uma "Sociedade" e além do mais "Alternativa"? Por que vir ao sacramento com este nome? Quem demandava uma outra sociedade?

Pergunto-me também sobre os motivos. Se esconderia enrrocasda no meu idealismo a velha áspide da vaidade? Vestia-me neste ideal de um Parsifal, um louco-inocente, que queria encontrar o Graal e salvar os homens de suas dores? Por que imaginar que os homens querem ser salvos? Será que os homens amam o sofrimento, como pensava de modo atormentado Dostoiesvsky? São perguntas que até hoje se demoram dentro de mim.

Uma coisa é certa: havia sempre uma afflição de neurótico em fazer aquelle programa. Era um sacrifício. Por um triz a timidez e a insegurança não me fizeram deserdar. Queria ser um arauto, comunicar uma mensagem que conclamasse meus conterrâneos a se erguerem da rede que embala e hypnotiza os homens com a "velha opinião formada sobre tudo".

Mesmo trêmulo e no desconforto damnado dos ansiosos annunciava que estava no ar uma programação dirigida à sociedade alternativa. Mas haveria naquelle sertão essa sociedade? Fallava para o presente ou para o futuro?

Deixemos a estação escura da noite com suas dúvidas e testemunhemos alguma aurora: a provocação que se esconde na música do Raul Seixas "mas se eu quero e você quer esperar Papai Noel" é outra que aquella do debochado chavão: "você crê em Papai Noel". O que ainda não inteligimos é que há muita lucidez na loucura do maluco-belleza. "Um homem", dizia o poeta Novalis, "é um deus quando sonha e um animal quando pensa". O galardão dos que "esperam" Papai-Noel consiste em sonhar e sonhando se reciclam, revigoram suas forças para laborarem ao sol. Infelizes dos que "acreditam" porque estão presos, na caverna de Platão, às algemas da opinião ideológica das bestas que construíram a sociedade das "certezas" e a sustenta com a violência e a mentira.

Vejamos alguns exemplos que passam por alto da nossa convicta sociedade no que diz respeito à occultação da verdade: 

- documentamos a mais de sessenta annos, de modo ininterrupto, com milhões de testemunhas, milhares de photos e filmagens, à apparição de ufos, no entanto nenhum dos mais de duzentos Estados do mundo, chamou a sua respectiva sociedade para ruminar o assunto com a devida seriedade; - ninguém até hoje viu o átomo e elle é dado como certo, mas os "esclarecidos", que gracejam de Aristóteles, juram que não é preciso: o modelo theórico sciêntifico dispensa a claridade do olho; - nosso currículo escolar não pode prescindir da theoria da evolução, apesar da ausência de provas; e - de arremate, algo curiosíssimo: "podemos datar" o universo em quatorze bilhões de annos e "saber" da presença de oxigênio numa galáxia remota, mas inventariamos apenas uns míseros cinco por cento dos nossos oceanos.

Por último, devo esclarecer, sob o risco de termos dito tudo em vão: a Sociedade Alternativa não é necessariamente uma sociedade da innovação, digo, da procura sórdida por tudo que é moda; e nem uma sociedade marginal alheia ao fluxo da vida, apenas porque está na peripheria, exilada do círculo central das decisões. Dizemos alternativa, para esclarecer que há outra (alter) forma de vida possível, que não a opção degradante que nos é imposta: uma forma de vida que funciona, sem desgaste, porque se conforma com as leis eternas onde não vemos o capricho humano. Por exemplo, o modo alternativo como escrevo este texto. Elle está em portuguez etymológico. Daqui a mil annos o arranjo de suas palavras será outro, mas a escripta dellas será a mesma. Por que? É simples a resposta: escripta etymológica quer dizer conforme a origem, razão pela qual cabe um esclarecimento aphorismático da philosophia: tudo muda exceto a origem. Precisamos ser alternativos ou podemos dizer, inspirados em Fernando Pessoa: precisamos outrar.

Euphrasio Torquato Júnior

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