sábado, 21 de abril de 2018

Dias de Ulisses

Carpen Diem, quam minimum credula póstero. A célebre fórmula contida na Ode 1.11, um dos poemas mais famosos do poeta latino Horácio, pode ser lida como um elogio ao instante singular e furtivo do dia presente. “Colha o dia, mantenha-se minimamente crédula no porvir”, diz o poeta à figura feminina de Leucônoe, incitando-a a viver o instante, a deixar o futuro a cargo dos deuses. A concisão da fórmula em latim, cujo conteúdo remete à filosofia epicurista sobre a brevidade da vida, vem encantando gerações de poetas que não se cansam de reinterpretá-la a partir das muitas metáforas do efêmero, como a frágil e bela rosa colhida que logo perde o viço nas Odes do renascentista Pierre Ronsard.

A máxima de Horácio, contudo, não pode ser compreendida nem como uma incitação a entrega aos prazeres do presente, ao dolce farniente, como propõem alguns de seus leitores mais apressados, nem como uma simples espera passiva diante das coisas. Na verdade, ela é a constatação de que os seres humanos são marcados pelo dia, essa unidade temporal que designa o momento atual, o tempo presente, o breve instante. Diz o texto da Ilíada, “os mortais são semelhantes a folhas, que ora vivem esplendorosamente, comendo o fruto da terra, ora se consomem e caem no nada”.

Ciente da efemeridade da vida humana, diante dos muros de Tróia, Ulisses sabe que deve viver um dia por seu turno e esperar o que os deuses lhe reservam de novo a cada manhã. Ao contrário dos habitantes do Olimpo que vivem a eternidade no tempo do kairós, Ulisses está situado na cotidianidade, no tempo do chronos. No julgar de Marcel Detienne, essa diferença revela uma discrepância de vitalidade entre os humanos e as divindades do Olimpo. Ambos têm aiôn, vida, porém os deuses não se preocupam com o futuro porque são imortais e vivem o sempre. Os humanos, em contrapartida, por serem mortais, inquietam-se com o vindouro, mas finalmente não deveriam, pois o que eles podem viver como realidade é apenas o diário, o imediato, o agora.

Capturar o instante fugitivo e não se inquietar com o porvir. Para quem acha que isso é muito pouco, convém lembrar que um dia não é tão curto assim, como revela a jornada de outro Ulisses, o de Joyce, em sua odisseia entre Bloom e Molly. É que finalmente o instante presente é um enigma. O tempo, esquecemos, é sempre o presente. Presente do passado, no caso da memória, presente do futuro, no caso da espera, presente do próprio presente, no caso do agora. Curiosamente, o instante presente é desprovido de toda duração. Afinal, como bem observou Hegel, o agora não é mais quando ele é. O instante presente desaparece do momento mesmo que tomamos consciência dele.

Mesmo nos escapando, o dia é tudo o que podemos possuir. Capturá-lo em sua inteireza não é algo evidente. É um aprendizado, uma conquista. 

Eduardo  Rabenhorst
Fonte: wscom

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